Prof. João Morais
«Eu nunca guardei rebanhos» é o primeiro de quarenta e nove poemas que constituem a obra O Guardador de Rebanhos, de Alberto Caeiro, heterónimo de Fernando Pessoa. O vocábulo “rebanhos” encontra-se presente neste poema e no nome do livro de que o mesmo foi extraído. A palavra “rebanhos” aparece como uma metáfora de ideias, pois são as ideias que o sujeito poético vê ao olhar para o rebanho (“Olhando para o meu rebanho e vendo as minhas ideias”). Por outro lado, este vocábulo serve também para representar a multiplicação dos sentidos do eu poético na proporção dos objetos em que incidem os seus sentidos.
Nesta composição poética, o sujeito lírico começa por visualizar-se a si mesmo, em termos metafóricos, como um pastor (“Eu nunca guardei rebanhos, / Mas é como se os guardasse.”), reduzindo os seus pensamentos àquilo que é concreto e procurando estabelecer uma relação de comunhão e de harmonia com a natureza (“Conhece o vento e o sol / E anda pela mão das Estações”). De pastor, o sujeito poético tem o deambulismo (“Ou, passeando pelos caminhos ou pelos atalhos”), o andar constantemente sem destino, observando o que o rodeia: a variedade inexaurível da natureza, com o espírito concentrado numa atividade suprema: olhar (“A seguir e a olhar”).
De facto, o pastor simboliza a solidão e o pensamento contemplativo: está sozinho na natureza e ocupa os seus dias a vaguear com o seu rebanho, sem perturbar a natureza e alimentando-se do que ela dá. Deste modo, o eu poético considera-se um pastor, visto que incorpora em si as qualidades do mesmo, mas não é limitado pela vida que um pastor leva, isto é, ele serve-se da arte do pastor para atingir um estado contemplativo. Para além disso, a intimidade que o sujeito lírico manifesta com a natureza (“E anda pela mão das Estações”) e a grande comunhão entre ambos, que resulta de ele se considerar um pastor, compaginam-se com a ingenuidade e a simplicidade que se representam no poema (“Toda a paz da Natureza sem gente / Vem sentar-se a meu lado.”).
O poema situa-nos, portanto, e desde o princípio, nos domínios da metáfora: o pastor-poeta, o rebanho-ideias. De seguida, na terceira e quarta estrofes, o sujeito poético procura negar a utilidade ou valor do pensamento, construindo uma antifilosofia. Este seu desejo de abolição da consciência constitui a via para alcançar a paz e a felicidade. Por esta razão, o poeta lamenta não que os seus pensamentos ou sentimentos sejam contentes (vv.23-24), mas sim saber que eles o são, pois sabê-lo implica desde logo conhecimento, o qual advém do ato de pensar (“Os meus pensamentos são contentes. / Só tenho pena de saber que eles são contentes”). Se não tivesse este conhecimento, seria absolutamente feliz (“Em vez de serem contentes e tristes, /Seriam alegres e contentes”). Assim, é paradoxalmente “contente” e “triste”, e a tristeza provém da consciência de saber (vv.23-25).
Desta forma, verifica-se neste poema o regresso da dor de pensar, já abordada pelo ortónimo. O incómodo que o ato de pensar acarreta é reforçado na comparação “Pensar incomoda como andar à chuva”. Pensar é, segundo o sujeito lírico, como andar à chuva: quanto mais chove, mais nos é difícil avançar normalmente. De modo semelhante, quanto mais pensamos, mais difícil é viver normalmente. Para o sujeito poético, ser feliz é ser guiado pelas sensações do momento e o pensar provoca tristeza e desconforto, como a situação descrita nos versos anteriormente enunciados.
Os pensamentos do sujeito poético reduzem-se àquilo que é concreto, àquilo que ele percepciona através dos sentidos. Por esta razão, o eu poético é sensacionista e a sua vida é, deste modo, comandada pelo primado das sensações. É através do exercício dos sentidos que ele toma conhecimento da verdade e reduz o abstracto ao concreto (vv.14-15).
Nesta composição poética, o sujeito lírico tem a noção de que é poeta, mas, para ele ser poeta, nunca foi uma ambição (“Ser poeta não é uma ambição minha”), apenas constitui a sua forma de estar sozinho com as suas ideias, num estado contemplativo e de autorreflexão (“É a minha maneira de estar sozinho.”). Na sétima estrofe estão patentes, através de uma enumeração de ações, outras características do eu poético enquanto poeta (vv.41-43).
Na oitava estrofe do poema, o sujeito lírico saúda todos os seus leitores de forma gentil e humilde como um campesino (“Saúdo todos os que me lerem, / Tirando-lhes o chapéu largo”). Saúda-os, sugerindo-lhes tudo quanto é simples e objetivo, pacífico e suave, ingénuo e natural – o sol, a chuva, a casa, a janela aberta, a cadeira predileta, a árvore antiga, a criança despreocupada – proporcionando-lhes, assim, uma leitura que se configura com o exercício espontâneo dos sentidos.
Relativamente à forma, o sujeito poético recorre ao verso solto, verificando-se a inexistência tanto de isomorfismo como de isometrismo. Isto concorre para uma maior simplicidade e naturalidade no poema. De referir ainda o vocabulário e sintaxe simples, sem grande elaboração e o estilo coloquial, que compaginam com a educação que Caeiro recebeu. Nesta composição poética, verifica-se a presença de dois campos lexicais dominantes: a natureza e os sentidos, valores sempre presentes na poesia deste heterónimo de Fernando Pessoa. É de destacar ainda o ritmo prosaico patente, ritmo moderado como um deslizar vagaroso e contínuo, que faz com que os versos deslizem tranquilos perante o nosso olhar interior, sem paragens, sem interrupções.
A nível estilístico, é de salientar, na primeira estrofe, a personificação da natureza (v.5, vv.7-8) e as comparações (v.3, v.9, v.13), recursos que evidenciam a relação íntima e intensa que o eu poético estabelece com a natureza.
Em conclusão, neste poema, o sujeito poético, não é um pastor no sentido literal da palavra. Ele possui uma alma de pastor, ou seja, é um pastor na sua essência. A contemplação da natureza, da beleza primordial, leva-o a sentir a realidade de forma intensa, num modo similar ao da pastorícia que reúne a solidão e a contemplação. Alberto Caeiro, poeta bucólico e sensacionista, escreve e pensa versos de forma concomitante, relacionando realidades contrastantes, traços estes que formam a base da originalidade e do ineditismo da sua poética.