Na presente composição
Miguel Torga reatualiza o mito de Sísifo, com contornos bem pessoais que não se
compaginam com a vertente trágica que a antiguidade clássica configurou no mito
original.
Em primeiro lugar, o
poema apresenta como tema a insatisfação enquanto condição necessária para a
realização humana, ou seja, um programa de vida centrado na vontade da
superação humana. Este programa de vida é caracterizado, ao longo do poema, por
ser um processo contínuo e metódico marcado pelo inconformismo, pela
persistência e pelo esforço incessante na superação das dificuldades (“Sem angústia e sem pressa” / “Enquanto não
alcances / Não descanses.”). O sujeito lírico defende, como valores de
maior importância, a ambição insaciável e a liberdade (“Sempre a sonhar” / “E, nunca saciado,” / “E os passos que deres” /
“Dá-os em liberdade”).
O título, Sísifo, segundo a mitologia grega, era
rei de Corinto, que, após denunciar os atos cruéis de Zeus, foi castigado a
permanecer no Hades, eternamente, onde era forçado a realizar a tarefa
impossível de carregar indefinidamente uma rocha até ao cume de uma encosta,
pois ela acabava sempre por resvalar para o sopé do monte. Sísifo torna-se,
assim, um símbolo da persistência e do esforço desmedido. O título transmite,
então, a ideia de uma vida de luta pelos objetivos, pela ambição e pela persistência
perante as dificuldades o que se verifica ao longo do poema (“Enquanto não alcances / Não descanses.” /
“E, nunca saciado,”). No poema observa-se uma reatualização do mesmo mito,
pois, por um lado, o sujeito lírico exorta o leitor ao combate, à ação e ao
inconformismo com as dificuldades, à semelhança de Sísifo, na concretização dos
seus sonhos (“Enquanto não alcances / Não
descanses.”) mas, por outro lado, em oposição ao mito de Sísifo, incentiva
e valoriza a prática deste comportamento em plena liberdade (“E os passos que deres” / “Dá-os em liberdade”).
É essa vontade de superação em completa liberdade e não enquanto peça duma
predestinação que Torga propõe ao seu leitor.
Relativamente à
pontuação, é de realçar o valor das reticências que acompanham o primeiro
verso. Elas pressupõem a ideia de continuidade inerente ao trabalho de esforço
na vida que nunca acaba. O uso do ponto de exclamação no verso “És homem, não te esqueças!” concorre
para o calor humano que deve animar o pendor ético do texto, a ser partilhado
pelo leitor através dos múltiplos apelos do sujeito poético. Os pontos finais,
corroborados pelas vírgulas, estruturam as frases declarativas, que exprimem o
ideário do esforço e a ética da coragem e do vigor do homem – expressão de um
humanismo a que não é alheio o desespero pela ausência do cumprimento desse
esforço por parte de muitos de nós.
A utilização de formas
verbais no imperativo (“Recomeça…”) e no presente do conjuntivo com valor
imperativo (“Enquanto não alcances / Não descanses / De nenhum fruto queiras só
metade”) concorrem para a componente exortativa do poema. O sujeito lírico tem
como objetivo, através do uso destas formas verbais, aconselhar e promover a
adesão do leitor ao programa de vida por ele preconizado.
O recurso a versos
curtos e a consoantes sibilantes imprimem ao poema um ritmo lento, intimista –
quase como quem sussurra –, o qual se coaduna com o ideal de serenidade que o
sujeito lírico defende (“Sem angústia e
sem pressa”). O ritmo lento que percorre a composição poética reflete o
trabalho calmo, meticuloso e sem pressa que deve caracterizar a ação humana.
No que se prende com os
ecos que a tradição literária nos lega, o poema Sísifo, por um lado, transmite uma ideia oposta à filosofia de
Ricardo Reis. Se, por um lado, neste poema há um apelo à persistência (“Recomeça…”) e à insatisfação (“E, nunca saciado”), por outro lado, no
caso do heterónimo de Pessoa, encontramos a ideia de passividade e de demissão
(“Sossegadamente fitemos o seu curso”
in “Vem sentar-te comigo Lídia à beira do
rio”). A valorização do sonho e da loucura ao longo do poema, por outro
lado, compraz-se com a “loucura” pessoana da Mensagem, na medida em que permite resgatar os homens da
mediocridade, permitindo que estes cumpram a sua dimensão humana (D. Sebastião, rei de Portugal). O tema
deste poema é também abordado n’ Os
Lusíadas, nomeadamente no canto VI. Neste canto, o poeta reflete sobre o
verdadeiro valor da glória e as formas de alcançar a mesma: com esforço,
perseverança, sofrimento e humildade.
Em suma, este poema é um
“hino à condição humana”, na medida
em que valoriza uma ética centrada na liberdade e no sonho, e constitui uma
exortação ao espírito de resistência, insubmissão e perseverança do ser humano,
simbolizado no esforço incessante de superação do homem.
Autora: Maria Inês Vidal e João Carrejana, 12º B