Enunciado
Lê
atentamente a seguinte passagem d’ Os
Maias:
Os criados serviram o café. E como havia já três longas horas que estavam
à mesa, todos se ergueram, acabando os charutos, conversando, na animação viva
que dera o champanhe. A sala, de teto baixo, com os cinco bicos de gás ardendo
largamente, enchera-se de um calor pesado, onde se ia espalhando agora o aroma
forte das chartreuses e dos licores
por entre a névoa alvadia do fumo.
Carlos e Craft, que abafavam, foram
respirar para a varanda; e aí recomeçou logo, naquela comunidade de gostos que
os começava a ligar, a conversa da Rua do Alecrim sobre a bela coleção dos
Olivais. Craft dava detalhes; a coisa rica e rara que tinha era um armário
holandês do século XVI; de resto, alguns bronzes, faianças e boas armas…
Mas ambos se voltaram ouvindo, no
grupo dos outros, junto à mesa, estridências de voz, e como um conflito que
rompia: Alencar, sacudindo a grenha, gritava contra a palhada filosófica; e do outro lado, com o cálice de conhaque na
mão, Ega, pálido e afetando uma tranquilidade superior, declarava toda essa
babuge lírica que por aí se publica digna da polícia correcional…
– Pegaram-se outra vez – veio dizer
Dâmaso a Carlos, aproximando-se da varanda. – É por causa do Craveiro. Estão
ambos divinos!
Era com efeito a propósito de poesia
moderna, Simão Craveiro, do seu poema «A Morte de Satanás». Ega estivera
citando, com entusiasmo, estrofes do episódio da «Morte», quando o grande
esqueleto simbólico passa em pleno sol no Boulevard, vestido como uma cocotte arrastando sedas rumorosas:
E entre duas costeletas, no decote,
Tinha um «bouquet» de rosas!
E o Alencar, que detestava o
Craveiro, o homem da «Ideia Nova», o paladino do Realismo, triunfara,
cascalhara, denunciando logo nessa simples estrofe dois erros de gramática, um
verso errado, e uma imagem roubada a Baudelaire!
Então Ega, que bebera um sobre outro
dois cálices de conhaque, tornou-se muito provocante, muito pessoal.
– Eu bem sei porque tu falas,
Alencar – dizia ele agora. – E o motivo não é nobre. É por causa do epigrama
que ele te fez:
O Alencar d’ Alenquer,
Aceso com a Primavera…
– Ah, vocês nunca ouviram isto? – continuou ele voltando-se, chamando os
outros. – É delicioso, é das melhores coisas do Craveiro. Nunca ouviste,
Carlos? É sublime, sobretudo esta estrofe:
O Alencar d’ Alenquer
Que quer? Na verde campina
Não colhe a tenra bonina
Nem consulta o malmequer…
Que quer? Na verde campina
O Alencar d’ Alenquer
Quer menina!
Eu não me lembro do resto, mas termina com um grito de bom senso, que é a
verdadeira crítica de todo esse lirismo pandilha:
O Alencar d’
Alenquer
Quer cacete!
Alencar passou a
mão pela testa lívida, e com o olho cavo fito no outro, a voz rouca e lenta:
– Olha, João da
Ega, deixa-me dizer-te uma coisa, meu rapaz… Todos esses epigramas, esses
dichotes lorpas do raquítico e dos que o admiram, passam-me pelos pés como
enxurro de cloaca… O que faço é arregaçar as calças! Arregaço as calças… Mais
nada, meu Ega. Arregaço as calças!
E arregaçou-as
realmente, mostrando a ceroula, num gesto brusco e de delírio.
Questionário
Documentando as tuas
afirmações com passagens do texto, responde ao seguinte questionário:
1-
Localiza este excerto na estrutura da obra. Justifica a tua resposta.
2
- Analisa a orientação estética defendida por João da Ega.
3-
Faz a caracterização de Alencar tendo em conta a conceção e a representação
social desta personagem.
4
- Será que a tensão vai variando de intensidade ao longo deste excerto?
Justifica a tua resposta.
5
– Estabelece um paralelo entre este episódio aqui representado e o final da
obra no que se prende com a relação entre Romantismo, por um lado, e Realismo e
Naturalismo, por outro.
Cenários de resposta
(Rafael Caseiro Lemos e Ricardo Duarte Silva Morgado)
Questionário
1. Quanto
à estrutura externa, este excerto localiza-se no capítulo VI da obra Os Maias, correspondendo, no que toca à
estrutura interna, ao episódio do Jantar no Hotel Central («E como havia já
três longas horas que estavam à mesa […]»). O excerto relaciona-se com o
subtítulo Episódios da Vida Romântica
por se tratar de informação relativa à crónica de costumes. É precedido pelo
momento em que se dá o primeiro contacto entre Carlos e Maria Eduarda, à
entrada do Hotel Central, onde estão alojados os Castro Gomes, e sucedido pelo
passeio de Carlos com Alencar pelo Aterro até ao Ramalhete e, de seguida, por
um momento de exploração do espaço psicológico de Carlos, um sonho em que
reviveu este primeiro encontro com a mulher que amará.
2. A
orientação estética defendida por João da Ega é o Realismo e o seu
prolongamento, o Naturalismo, correntes bastante influenciadas pela ciência e
pela filosofia do século XIX, que se caracterizam pela análise rigorosa dos
factos e suas causas. Esta sua orientação está representada nos seguintes
versos de Simão Craveiro: «E entre duas costeletas, no decote,/ Tinha um «bouquet» de rosas!». Opõe-se ao
Romantismo, movimento artístico em que Alencar se insere («[…] toda essa babuge
lírica que por aí se publica digna da polícia correcional…»).
3. Quanto
à sua conceção, Alencar é uma personagem tipo, representando uma parte da alta
sociedade portuguesa da época. É um poeta romântico que vê, agora, a
deterioração não só da cultura à sua volta («[…] detestava o Craveiro, o homem
da «Ideia Nova», o paladino do Realismo […]»; «Era outra coisa, meu Carlos!
Vivia-se! Não existiriam esses ares científicos, toda essa palhada filosófica,
esses badamecos positivistas…») mas também da sua vida social, ou seja, a
franca diminuição da sua influência no meio lisboeta («E aquele charuto dado a
um homem tão rico, ao dono do Ramalhete, fazia-o por um momento voltar aos
tempos em que nesse Marrare ele estendia em redor a charuteira cheia […]»).
4. A
tensão vai crescendo ao longo do excerto, devido ao conflito literário entre
João da Ega e Alencar. Cada um defende a sua orientação estética: Alencar, o
Romantismo, e João da Ega, o Realismo e o Naturalismo. A intensidade aumenta a
partir do momento em que Ega se torna «muito provocante, muito pessoal»,
troçando do outro ao citar um epigrama de Craveiro («O Alencar d’Alenquer/ Quer
cacete!»), deixando Alencar lívido e indignado («E arregaçou-as [calças]
realmente, mostrando a ceroula, num gesto brusco e de delírio.»), ficando as
restantes personagens bem como o leitor na expectativa de que poderá ter lugar
um desfecho com muita agressividade física.
5. Neste
episódio do Jantar no Hotel Central as correntes realista e naturalista são
representadas por João da Ega, que defende a implementação da «Ideia Nova» como
forma de romper com o ideal romântico da época («Ega estivera citando, com
entusiasmo, estrofes do episódio da «Morte», quando o grande esqueleto simbólico
passa em pleno sol no Boulevard, vestido como uma cocotte arrastando sedas rumorosas: […]»), cuja representação
máxima n’ Os Maias é feita através de
Tomás de Alencar («Era com efeito a propósito de poesia moderna, Simão
Craveiro, do seu poema “A Morte de Satanás”.»).
Pelo
contrário, no final da obra, aquando do passeio final de Carlos da Maia e João
da Ega por Lisboa, este último confessa que, na verdade, nunca passaram de
românticos: «- E que somos nós? […] Românticos: isto é, indivíduos inferiores
que se governam na vida pelo sentimento, e não pela razão…». Os dois
intelectuais, apesar de todos os projetos que idealizaram ao longo da vida, não
foram capazes de implementar a «Ideia Nova», que tanto defendiam, tendo regido
toda a sua vida pela demissão e pelo sentimento, emblema do Romantismo.
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