Álvaro de Campos, o heterónimo de Fernando Pessoa com a obra mais diversificada do ponto de vista da sua evolução e múltipla reactualização de tendências estéticas, explora o tema da infância num corpus muito considerável dos seus textos.
A infância é representada enquanto época feliz, o tempo em que o sujeito poético experimenta alegria, o que se opõe à realidade do presente, que corresponde ao tempo de infelicidade e de tédio.
No poema “Aniversário”, o sujeito poético, numa primeira parte, descreve as rotinas festivas que se passavam na sua infância (“A mesa posta com mais lugares, com melhores desenhos na loiça, com mais copos,/ O aparador com muitas coisas – doces, frutas, o resto na sombra debaixo do alçado”). Relatam-se esses dias de celebração, sendo dias felizes, de alegria partilhada pela família, de inocência e despreocupação, adquirindo uma dimensão mítica, pois ultrapassa as coordenadas do espaço e do tempo (“[…] era uma tradição de há séculos”). Ainda no mesmo texto, Campos lamenta-se por a infância se encontrar tão longe (“A que distância!...[…]/O tempo que festejava os meus anos!”) e por ser irrecuperável (“O que sou hoje é terem vendido a casa”).
Álvaro de Campos, numa visita a Lisboa, escreve o poema “Lisbon Revisited (1923)”, para exprimir a sua abulia para com a sociedade moderna. Através de um tom coloquial e provocatório, afirma que na Lisboa da sua infância havia mais felicidade que na da atualidade (“Ó ceu azul – o mesmo da minha infância - / Eterna verdade vazia e perfeita”, “Ó magoa revisitada, Lisboa de outrora de hoje!”).
No poema “Ode Marítima”, o sujeito poético encontra-se num cais ao amanhecer e observa um paquete e toda a vida marítima ao seu redor (“Sozinho, no cais deserto, a esta manhã de verão”). À medida que o paquete começa a aproximar-se, o sujeito poético começa a perder a lucidez começando a pensar em piratas, os seus brinquedos prediletos quando criança (“Ó cousas navais, meus velhos brinquedos de sonho!”), mas, ao pensar em todas as brutalidades que os piratas faziam, dá-se conta de que a sua infância acabou e a sua inconsciência também (“E a minha infância feliz acorda, como uma lágrima, em mim”; “Ah, como pude eu pensar, sonhar aquelas coisas?”).
Este tempo de felicidade afigurar-se-á irrecuperável num corpus significativo da sua obra.
Para além do poema “Aniversário” já referido anteriormente, também em “Datilografia”, o sujeito poético afirma que a infância é o tempo para ser feliz (“Temos todos duas vidas: / A verdadeira, que é a que sonhámos na infância”), pois ainda não sabemos ler, nem pensar e só sentimos (“Há só ilustrações de infância: / Grandes livros coloridos, para ver mas não ler;”). O sujeito lírico idealiza a infância (“Outrora, / Quando fui outro, eram castelos e cavalarias”), mas acaba por acordar, devido ao barulho das máquinas, e dá-se conta do tédio e da angústia que sente na vida adulta (“Nesta morremos […] Se, desmeditando, escuto”). Surge, porém, no final do texto, a impossibilidade de, dado o “estalar” das máquinas, o sujeito dispersar-se e já não conseguir alhear-se do espaço físico – e do tempo presente! – da sua vida.
Na poética de Álvaro de Campos há, assim, uma oposição passado presente, que se configura no binómio infância idade adulta, numa representação maniqueísta que o aproxima do ortónimo bem como dos outros heterónimos. O tema da infância, não obstante o tratamento específico que tem nas diferentes máscaras pessoanas, acabará por conferir unidade à obra de Pessoa.
Cenário de Resposta do Grupo III do 1º Teste de Português
Mariana Araújo, 12º A
Professor João Morais
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