Na lírica camoniana há um confronto entre dois tipos de mulher: uma de configuração espiritual e a outra corporizada e associada à sedução do sujeito poético.
A mulher petrarquista é um ideal de mulher enquanto ser superior, servida pelo amado, estabelecendo-se, assim, uma relação entre vassalo e suserano, à semelhança do que ocorria na poesia provençal – que influencia a nossa cantiga de amor. Camões, seguindo as ideias de Petrarca, que desenvolve este ideal amoroso no Renascimento, por vezes, caracteriza a mulher como um ser sem corpo visível, na qual prevalecem a serenidade, a harmonia e os traços psicológicos de um modo geral. Isto confere à figura feminina uma dimensão etérea, que a coloca num plano inacessível. Daí surge a dificuldade da caracterização física da mulher (“Um mover d’olhos, brando e piadoso”). Este ideal permite a sublimação de um sentimento amoroso de dimensão unicamente espiritual.
Ao ideal de Vénus, pelo contrário, está associada uma figura feminina que é corporizada, ou seja, com contornos definidos e palpáveis e de uma intensa sensualidade (“Descalça vai para a fonte”). Porém, a mulher também é inacessível, pois o conceito de amor está associado à frustração inerente à experiência amorosa de Camões (“Erros meus, má fortuna, amor ardente”), a figuras mitológicas (“Circe”) e a locais utópicos («Alma minha gentil que te partiste»). Este ideal corresponde à exaltação sensível e terrena do amor.
Assim, na poesia lírica de Camões há uma forte tensão entre dois ideais de mulher: a mulher petrarquista de configuração espiritual, distante e abstrata, por um lado, e a mulher associada ao ideal de Vénus, por outro, que é corporizada e tem uma profunda sensualidade. O vilancete “Perdigão perdeu a pena” é particularmente elucidativo dessa tensão entre um projeto de elevação no amor e o facto de o poeta se ater a uma dimensão terrena do amor.
Prof. João Morais
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