Ano letivo 2020/21
10º ano D
16 de fevereiro de 2021
Prof. João Morais
I
Lê com atenção o excerto da Farsa de Inês Pereira que a seguir se transcreve.
O Escudeiro, vendo cantar Inês Pereira, mui agastado lhe diz:
Vós cantais, Inês Pereira?
Em vodas m'andáveis vós?
Juro ao corpo de Deus
que esta seja a derradeira!
Se vos eu vejo cantar,
eu vos farei assoviar.
INÊS - Bofé, senhor meu marido,
se vós disso sois servido,
bem o posso eu escusar.
ESCUDEIRO - Mas é bem que o escuseis,
e outras cousas que não digo!
INÊS - Porque bradais vós comigo?
ESCUDEIRO - Será bem que vos caleis.
E mais, sereis avisada
que não me respondais nada,
em que ponha fogo a tudo,
porque o homem sesudo
traz a mulher sopeada.
Vós não haveis de falar
com homem nem mulher que seja.
Somente ir à igreja
não vos quero eu leixar.
Já vos preguei as janelas,
por que não vos ponhais nelas.
Estareis aqui encerrada
nesta casa, tão fechada
como freira d'Odivelas.
INÊS - Que pecado foi o meu?
Porque me dais tal prisão?
ESCUDEIRO - Vós buscastes discrição,
que culpa vos tenho eu?
Pode ser maior aviso,
maior discrição e siso
que guardar o meu tesouro?
Não sois vós, mulher, meu ouro?
Que mal faço em guardar isso?
Construindo frases bem estruturadas e documentando as tuas afirmações com passagens do texto, responde ao questionário que segue.
1. Caracteriza as personagens em cena.
2. Interpreta a crítica concretizada no presente excerto.
3. Explica como o excerto apresentado concretiza as características do modo artístico e literário em que se integra a Farsa de Inês Pereira.
II
Num texto expositivo de 250 palavras e com base na leitura da Farsa de Inês Pereira, mostra que as personagens desta peça recorrem à máscara para fazer parecer o que não são.
III
Num texto expositivo de 250 palavras e com base na leitura da Farsa de Inês Pereira, mostra que esta farsa vicentina é um divertimento sério orientado por uma intenção moral.
Cotações
I) 90 pontos= 3 x 30 pontos (18+6+6)
II) 55 pontos
33 pontos (estrutura temática e discursiva)
22 pontos (correção linguística)
III) 55 pontos
33 pontos (estrutura temática e discursiva)
22 pontos (correção linguística)
CORREÇÃO DO TERCEIRO TESTE DE PORTUGUÊS
Tenere lupum auribus.
I
1) O Escudeiro, exibindo agora a sua verdadeira natureza, é agressivo, autoritário e cruel (vv.3-4) ao manter Inês fechada em casa (vv.25-27) e ao proibi-la de cantar (vv.5-6), ações igualmente reveladoras da opressão que exercita sobre a sua mulher. Revela falsidade, uma vez que justifica o seu comportamento dizendo que apenas quer guardar o seu «tesouro», ou seja, Inês (vv.32-35). No final do excerto, exibe o seu sarcasmo através da interrogação retórica: “Vós buscastes discrição,/ que culpa vos tenho eu?”. A linguagem palaciana é ainda um traço desta personagem («Não sois vós, mulher, meu ouro?»).
Por outro lado, Inês apresenta-se uma esposa submissa (vv.7-9), apreensiva, desolada e indignada (vv. 28-29) visto que não sabe o que fez para merecer aquela situação de clausura (vv.29-30).
Trata-se, assim, dum par amoroso que se caracteriza pela relação entre um ser opressor e outro oprimido.
2) Neste texto são concretizadas diversas críticas.
Em primeiro lugar, é criticada a duplicidade de caráter visto que o Escudeiro aparentou ser algo que na realidade não é, revelando o seu verdadeiro caráter logo após o casamento. É igualmente criticada, através deste excerto da Farsa de Inês Pereira, a falta de preparação de certas raparigas, resultado da falta de maturidade que, por problemas de educação, não eram devidamente preparadas para o casamento. Por isso, Inês, na situação representada no presente excerto, mostra-se apreensiva, desolada e indignada (vv. 28-29), pois não sabe o que fez para merecer aquela situação de clausura (vv.29-30). É, do mesmo modo, satirizado o casamento por interesse de ascensão social, o qual acabou por trazer apenas desolação e frustração à protagonista.
Neste texto é também concretizada uma crítica relativamente à situação social da mulher portuguesa no século XVI, algo semelhante à que já vigorava na Idade Média. De facto, a mulher vivia como prisioneira, raramente podia sair de casa; quando casava era escrava do lar, dependia economicamente do marido e nunca podia sair sozinha, à semelhança de Inês Pereira.
Por fim, é igualmente denunciado o casamento enquanto forma de promoção económica, razão porque, só agora, o Escudeiro revela a sua verdadeira natureza: falsidade (vv. 32-35), despotismo e autoritarismo (vv. 3-4).
3) A Farsa de Inês Pereira integra-se no modo satírico, que utiliza o humor e a argúcia em conjunto com a finalidade de propor ao espetador a análise e uma atitude crítica em relação às situações e às personagens. Nesta farsa criticam-se grupos sociais como o Escudeiro, que por ser cruel e hipócrita, se põe a ridículo perante o público, indo ao ponto de ser cómico o modo como exprime a repressão que exercita sobre a sua mulher («eu vos farei assoviar»).
Para além disso, através duma interrogação retórica, o Escudeiro revela ironia («Vós buscades discrição / que culpa vos tenho eu?). Nestes dois versos, o Escudeiro critica Inês dizendo que ela deveria ter tido em conta outros critérios para a escolha de marido e não apenas a sua cultura (“discrição”). É igualmente reforçada a ideia de que ela é a verdadeira culpada da situação em que vive na medida em que é dado realce à verdadeira razão do infortúnio de Inês Pereira: um casamento que se realiza por falta de preparação de Inês em solteira.
Trata-se, assim, de uma informação apresentada do modo implícito que estimula o espetador para o sentido pretendido da mensagem.
Resulta deste excerto, como da representação (leitura) da peça, uma intenção morigeradora, já que é produzido no público (leitor) um apelo á correção de mentalidades e de comportamentos: preparação para o casamento – ao contrário de Inês – e cautelas a ter com os déspotas e hipócritas da sociedade.
II (por tópicos)
Duplicidade = um tema fundamental da FIP.
= estratégia comportamental para as personagens se promoverem socialmente.
Personagens cultivam aparência para atingirem os seus objetivos.
Exs.:
- Inês Pereira: esconde a prática do adultério com a máscara da alegria matrimonial.
- Escudeiro: esconde a sua penúria e o seu baixo caráter (cobarde, prepotente) para conseguir um casamento que lhe garanta subsistência;
- Leonor Vaz e os Judeus: promovem o comércio de cônjuges ideais de acordo com os valores que tentam adivinhar nos clientes;
- os religiosos (o clérigo que assediou Leonor Vaz na vinha, quando a personagem entra em cena, e o clérigo com quem Inês pratica o adultério no final da peça) abraçaram a vida contemplativa sem ter vocação para tal, o que se ilustra na vida dissoluta;
…
Sátira vicentina explora a dissimulação das personagens na crítica que prepara.
Sociedade de quinhentos = mundo de enganos com propósitos sociais, amorosos e económicos.
III (João Carrajana, 10º D)
A Farsa de Inês Pereira tem uma função edificante, visando a mesma peça criticar certos comportamentos sociais e as ações das instituições pela sua correção. Gil Vicente utiliza o cómico como meio para realizar a crítica, juntamente com a representação de personagens-tipo.
Pero Marques, que representa o burguês endinheirado do meio rural, é criticado pela sua ignorância, a falta de cultura e o desconhecimento das regras de convivência citadinas. Para realizar esta crítica, há momentos de comicidade como o facto de ele não saber com utilizar uma cadeira e a sua confusão perante dois significados do verbo sair mostrando a sua falta de nível intelectual.
O Escudeiro, pertencente á baixa nobreza, é criticado pela sua arrogância quando, no entanto, é um cobarde e seus comportamentos irão contrastar com a cobardia que acabará por revelar. É, ainda, denunciada a sua falsidade para atingir o seu objetivo que é ascender de nível económico. Essa falsidade é evidenciada pelo facto de se fazer parecer um homem honesto e bondoso e, após casar com Inês, revelar a sua verdadeira faceta como opressor e autoritário. O cómico também está presente na crítica ao Escudeiro, mais especificamente, na ironia utilizada pelo Moço nos seus diálogos e pela sua morte causada por um pastor enquanto fugia de uma batalha contra os Mouros no norte de África.
O Ermitão, representante do clero, é criticado pelo incumprimento do celibato levando Inês Pereira a praticar o adultério. Também nesta crítica existe o cómico perante a ingenuidade de Pero Marques, que não se apercebe do que acontece.
Podemos concluir que na Farsa de Inês Pereira existe ao mesmo tempo a sátira e o cómico, o segundo provocando-nos o riso e o primeiro fazendo-nos pensar nas ações erradas de cada personagem representativa de um grupo social ou instituição da sociedade, cumprindo a peça o objetivo da sátira, que é moralizar através do ridículo.
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