TESTE DE PORTUGUÊS
10.º ano E Prof.
João Morais
Lê o seguinte texto de Camões, que tem marcas autobiográficas.
Eu cantei já, e agora vou chorando
o tempo que cantei tão confiado;
parece que no canto já passado
se estavam minhas lágrimas criando.
5 Cantei; mas se me alguém pergunta: Quando?
Não sei; que também fui nisso enganado.
É tão triste este meu presente estado
que o passado, por ledo, estou julgando.
Fizeram-me cantar, manhosamente (1),
10 contentamentos não, mas confianças;
cantava, mas já era ao som dos ferros.
De quem me queixarei, que tudo mente?
Mas eu que culpa ponho às esperanças
onde a Fortuna injusta é mais que os erros?
(1) manhosamente: ao engano.
uindo
Cotações: 4 x
50 pontos (30+20)
11 de março de 2021
CORRECÇÃO DO TESTE DE PORTUGUÊS
Tenere lupum auribus.
1. Neste soneto é bem claro o contraste – mais aparente do que efetivo – entre dois tempos: o passado e o presente.
Assim, ao contrário do presente, tempo no qual o poeta experimenta uma saudade, uma tristeza e uma revolta profundas (“ao som dos ferros”), o passado é apresentado como um tempo não muito feliz, mas, comparado com o presente, parece um tempo de felicidade (“É tão triste este meu presente estado/ que o passado por ledo estou julgando”), daí o “eu” lírico afirmar “Eu cantei já”: o sujeito poético cantou cheio de esperanças no futuro («confianças»). No presente, porém, tem consciência de que qualquer esperança de felicidade é em vão.
No entanto, essa aparente felicidade
do passado, analisada à distância do presente, o que lhe confere objetividade,
não é mais que um engano (“Cantei, mas se alguém pergunta quando: / Não sei,
que também fui nisso enganado”), pois percebe agora que os seus sonhos foram
apenas ilusões.
2. No primeiro verso, “Eu cantei já, e agora vou chorando”, encontramos, ao nível semântico, uma antítese. Esta figura de estilo permite fazer contrastar o passado e o presente na vida do sujeito poético – o passado, tempo de esperanças, de ilusões; o presente, tempo de provações e de infelicidade (“ferros”) –exprimindo, assim, a dimensão muito acentuada do estado de alma do sujeito lírico, que é de uma saudade de um tempo irrecuperável, mesmo que ele tenha sido só aparentemente de felicidade.
Esta oposição entre um passado eufórico e um presente disfórico perpassa a poética de Camões, cuja tónica na perda e na desilusão se estende ao indivíduo e ao mundo («De quem me queixarei, que tudo mente?»).
3) Na última estrofe, o sujeito poético interroga-se e culpabiliza o mundo (v. 12) e o destino enquanto entidade decisiva e mais responsável pelo seu infortúnio e pela mudança que a sua vida sofreu. Esse infortúnio já era sentido pelo poeta no passado (“cantava, mas já era ao som dos ferros.”), mas torna-se mais intenso no presente (“É tão triste este meu presente estado”).
Deste modo, o sujeito poético reforça, neste último terceto, que não é responsável pelo seu sofrimento, sendo vítima duma Fortuna inclemente e inexorável: “a Fortuna injusta é mais que os erros”.
Surge, assim, a confirmação no final da composição de que as esperanças do passado viriam a ser frustradas (“Mas eu que culpa ponho às esperanças”) e de que a tristeza e a revolta do presente têm uma justificação: o destino deletério (“a Fortuna injusta é mais que os erros”) que institui o percurso trágico do sujeito lírico.
4) Este texto é um soneto, composição clássica constituída por um total de catorze versos dispostos em duas quadras seguidas de dois tercetos. O esquema rimático é abba, abba nas quadras e cde, cde nos tercetos, sendo, portanto, a rima interpolada e emparelhada nas quadras, e cruzada nos tercetos. Quanto à métrica, os versos são decassilábicos heroicos: acentos na sexta e décima sílabas métricas («Fizeram-me cantar, manhosamente),»).
Deste modo, esta composição poética pertence à medida nova, que reúne os tipos de métrica do dolce still nuovo importados de Itália para Portugal no século XVI, dos quais se destaca o verso decassilábico.
Assim, em contraste com formas poéticas tradicionais em
medida velha como o vilancete em redondilha maior ou em redondilha menor, a
medida nova está associada às formas poéticas de origem italiana e renascentista,
entre as quais o soneto, considerado um modelo lírico ideal no Renascimento, que
Camões cultivou com mestria e virtuosismo.
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