Vergílio Ferreira, Aparição, 16ª ed., Livraria Bertrand,
1983.
A Aparição, tal como o título poderá desde logo sugerir, é a narrativa
do percurso de uma personagem, Alberto, na cidade de Évora, interagindo com
outras personagens (“à luz da lua, na flor breve e miraculosa de uma profunda
comunhão”). Interroga-se sobre a vida e a morte para compreender a sua própria
existência (“Olho essa jarra […] e escuto o indício de um rumor de vida, o
sinal obscuro de uma memória de origens”).
Com a morte de Álvaro, seu pai,
Alberto começa a interrogar-se sobre o papel da morte na vida (“Então
bruscamente ataca-me […] a estúpida inverosimilhança da morte. […] Onde a
realidade profunda da tua pessoa, meu velho? […] Onde a tua pessoa, onde o que eras tu?”). Ao ser
convidado por Chico para fazer parte das conferências da Harmonia, o narrador
decide sobre qual a mensagem que quer passar ao mundo, a ideia existencialista
que Alberto supõe ser não só a sua aparição como também a do mundo –
tornando-se, assim, numa espécie de Messias (“De que poderia falar na
conferência? […] Precisava urgentemente de fazer a conferência, de revolucionar
o mundo […] É preciso vencer esta surpresa que nestes casos nos esmaga. Ajustar
a vida à morte.”).
A isto interliga-se o episódio
do Bailote, que, ao não ter mais a oportunidade de semear vida na terra
(“Atiravas a semente e a vida nascia a teus pés”), através da plantação da
semente (“Porque eu, senhor doutor, tive sempre uma mão funda, assim grande,
como um cocho de cortiça. Eu metia a
mão ao saco e vinha cheia de semente […] Dê-me um remédio […] que me ponha a
mão como a tinha. Assim grande, assim funda, assim, assim…”), não se sente
capaz de integrar a morte na vida e, por isso, suicida-se (“O homem
enforcou-se”).
É deste modo que, através das
suas aulas no liceu (“Mas de que vos hei-de falar, amigos? Creio que já vos
contei tudo o que sabia”), a conferência pela qual esperava ansiosamente e as
conversas com Sofia, Ana e Carolino, o narrador vai provocar na população de
Évora inquietações existenciais.
Ao espalhar a inquietação pelas
outras personagens, a ideologia do narrador – “Ajustar a vida à morte. Achar e ver a harmonia de ambas” – vai ser a
consequência do modo como a história se vai desenvolver (“Você é responsável
por tudo quanto acontecer”): primeiro, com Carolino, que entende mal a mensagem
do narrador (“E então eu pensei: já não há deuses para criarem e assim o homem,
senhor doutor, o homem é que é deus porque pode matar. (…) Digo é que matar é
igual a criar”) e, ao invés de criar vida, destrói-a. Mais tarde, o jovem louco
será culpado da morte de Sofia (“Eu matava-a e […] eu reduzia-lhe a nada aquilo
que era grande, ela, ela. […] E eu continuo vivo, continuo a ser grande, ela já
não é nada”).
Com Sofia, por sua vez, será porventura
a integração da personagem numa esfera do excesso, do inefável (“Sofia, Ana
quebrou-te […] um braço a uma boneca. […] E de um a um quebraste todos os teus
brinquedos […] preferias o absoluto da destruição”;“Há gente cobarde para tudo,
para aceitar, para acreditar, para jogar a vida numa solução. Como se houvesse
uma solução”), que, por ter conhecimento do modo como iria tudo acabar (“E eu
sabia-o, eu sabia. Você não trouxe nenhuma novidade”), a jovem tenta
suicidar-se sucessivas vezes (“Pois a Sofiazinha já deixou Lisboa. Você sabe
lá, doutor. Calcule que tentou suicidar-se outra vez…”).
Ana, no início, encontra-se na
esfera da inquietação, ao interiorizar a linguagem do narrador (“Sei-o, porque
foi a sua linguagem que eu achei para
me exprimir a mim mesma, para me certificar a mim mesma”); no final, após a
morte de Cristina – símbolo de sacrifício para conferir a paz a Ana – irá
alcançar a tranquilidade e saberá integrar a morte na vida através da religião
e da linguagem da personagem narrador (“…E de súbito vê-se que não é possível morrer. […] Onde está Cristina, a que era ela […] eu vejo-a, relembro-a […] Sou
irmã dela EU, que estou comigo, que me sinto ser, eu… […] Como diz você? A voz
inicial… Ouço-a, sei-a… Mas isto é
muito maior do que nós, muito maior, muito maior…”).
É por todos estes acontecimentos
que, ao longo da narrativa, Alberto se debate com interrogações
existencialistas (“Descobri-me na negação e na procura: será que interrogar não
é querer uma resposta? […] Terei,
pois, como destino esta agitação constante, esta sufocação de nada?”) e sente a
necessidade de, a partir do seu método (“Ana, eu te vejo, submissa, rendida ao
peso de uma velha condenação, procurando nos despojos de ti mesma a última flor
de humildade que te perfume a solidão. E tenho pena de ti”), integrar a morte
na vida – alcançar a harmonia.
No entanto, no final da
narrativa, descobrimos que, mesmo anos mais tarde, o narrador não encontra
respostas para as suas inquietações, apenas admitindo-se como parte da vida e
do percurso do Homem (“Mas o que sei é que o homem deve construir o seu reino,
achar o seu lugar na verdade da vida, da terra, dos astros, o que sei é que a
morte não deve ter razão contra a vida nem os deuses voltar a tê-la contra os
homens, o que sei é que esta evidência inicial nos espera no fim de todas as
conquistas para que o ciclo se feche”). Admite haver perguntas para as quais
não existe uma resposta mas que, ao iluminarem-lhe o seu percurso para encontrar
a verdade, para a aparição, conferem-lhe harmonia: “Sei e não temo: será o
temor só dos outros, para os outros, como são deles as palavras? Sei, não
talvez como quem conquistou mas como quem se despoja: a minha verdade é o que
me sobeja de tudo. […] Mas o tempo não existe senão no instante em que estou
[…]: a vida do homem é cada instante […]. O meu futuro é este instante
desértico e apaziguado”.
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