Os poemas “Autopsicografia” e “Isto”, de Fernando Pessoa ortónimo, apresentam
como tema principal o fingimento poético e são marcados pelo confronto entre imaginar e sentir. O poeta descreve o funcionamento da sua mente quando
exprime a sua arte, partindo da realidade, intelectualizando-a.
Em “Autopsicografia”, a dor é representada como um processo de
fingimento, pois o poeta vai reelaborar a dor sentida numa dor intelectualizada
no ato da criação literária (“O poeta é um fingidor.”). O processo de
fingimento é tão elaborado que o poeta vai proceder a uma dor intelectualizada
a partir da dor que inicialmente sente (“Finge tão completamente | Que chega a
fingir que é dor | A dor que deveras sente. “). Primeiro, o sujeito poético
sente a dor (“ A dor que deveras sente. “) e, depois, transforma-a numa dor
fingida (“ Que chega a fingir que é dor “).
Na segunda estrofe, o sujeito
poético alude ao prazer estético por parte do leitor. Este não sente a dor real
que o poeta sentiu, nem a dor fingida que o poeta imaginou (“ Não as duas que
ele teve, “), nem a dor que eles, leitores, têm (“ Na dor lida sentem bem, “),
mas sim uma dor estética que provém da leitura, ou seja, uma dor
intelectualizada que provém da interpretação do leitor ao ler o poema (“Mas só
a que eles não têm. “).
A última estrofe apresenta,
metaforicamente, a relação entre a razão
e o coração. Se, por um lado, o
“comboio de corda” é uma metáfora de coração, por outro lado, “calhas de roda”
é igualmente uma metáfora de razão, o que significa que a dor sentida (“ A dor
que deveras sente. “), relacionada com o coração, é comandada,
intelectualmente, pela razão (“ Gira a entreter a razão, | Esse comboio de
corda | Que se chama coração. “), que, assim, corresponde à dor fingida (“Que
chega a fingir que é dor“), resultado de uma elaboração mental da primeira dor,
que vem do coração.
O processo de transformação
retratado no poema “Autopsicografia” é retomado no poema "Isto". No
entanto, enquanto no poema “Autopsicografia” o poeta distingue entre sensação
(dor sentida) e fingimento (dor fingida), aqui existe uma simultaneidade entre
o sentir e a imaginação, ou razão.
Aquilo que o poeta sente é imediatamente reelaborado pela razão (“ Eu
simplesmente sinto com a imaginação. “) e não pelos sentimentos (“ Não uso o
coração. “).
A segunda estrofe constitui uma
confirmação do conteúdo da primeira estrofe, baseada na experiência vivida.
Todas as contingências da vida real do poeta ("Tudo o que sonho ou passo,
| O que me falha ou finda") são tudo aquilo que permite o acesso ao mundo
sensível, que permite o exercício das sensações (“ É como que um terraço “) e
não a um mundo inteligível, com uma realidade imaginada (“Sobre outra coisa
ainda. | Essa coisa é que é linda.“).
Na terceira estrofe, o sujeito lírico, em
jeito de conclusão (“Por isso […]“), distancia-se de qualquer envolvimento ao
nível da emoção e dos sentimentos (“Livre do meu enleio,“), optando por
reelaborar no texto aquilo que foi produzido pela imaginação. No último verso
(“Sentir? Sinta quem lê!“), o poeta ironiza, exibindo uma atitude de desprezo pelos leitores da tradição romântica, que
valorizam o sentir e que têm a opinião de que o nosso Pessoa – referimos agora
o autor – finge tudo o que escreve (“Dizem que finjo ou minto | Tudo que escrevo.
[…]“), por prezar a imaginação, ser racional e, assim, não se deixar envolver no
sentimento.
Relativamente ao plano formal, ambos os poemas apresentam
uma forte vertente de equilíbrio — ou não estivéssemos nós a falar da contenção
das emoções!
No poema “Autopsicografia” existe isomorfismo, apresentando
três quadras. No entanto, o poema “Isto”, apesar de também apresentar
isomorfismo, é composto por três quintilhas. Sendo o isometrismo uma marca dos dois textos, em
“Autopsicografia”, os versos apresentam uma métrica regular de sete versos
também chamada redondilha maior
(“Finge tão completamente”); em “Isto”, a métrica já é de seis versos (“Tudo
que escrevo. Não.”). A rima em “Autopsicografia” é sempre cruzada, ou seja,
apresenta um esquema rimático de a,b,a,b (“[…] fingidor| […] completamente| […]
dor| […] sente.”). O poema “Isto” apresenta um esquema rimático de a,b,a,b,b,
tendo rimas cruzadas e emparelhadas (“[…] minto| […] Não.| […] sinto| […]
imaginação.| […] coração.”). Quer num quer no outro texto há uma eufonia dos
versos muito percetível para a qual concorre o ritmo muito marcado (alternado).
Em ambos os poemas, o léxico e a sintaxe são de uma grande simplicidade, pelo
menos no que toca às primeiras aparências…
Após a leitura dos dois poemas, é possível verificar
que Fernando Pessoa, mais que nenhum outro escritor – não foi ele que levou a
heteronímia até às últimas consequências?! –, recusa a poesia como expressão
imediata das sensações, o está de acordo com o critério da despersonalização,
transversal a muitos vultos do Modernismo, como renúncia do conceito da
sinceridade.
Autoria: Sara
Isabel Gonçalves Precatado, nº31, 12ºA, Prof. João Morais
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